A paciência não morre

16.07.2018 | Por:

Final da Copa do Mundo, mais uma crônica de Leandro Marçal ao Portal KondZilla:

Nem tudo sai como o planejado. Aliás, quase nada. Bolamos as melhores estratégias, rascunhamos o passo a passo e o acaso joga tudo para o ar. Como o hexa que não veio. De nada adiantou pensarmos na melhor casa, na maior churrasqueira e nos preços mais baratos. Veio a Bélgica e mudou tudo.

O jeito foi pagar a visita à minha mãe. Ela me cobrava uma ida à velha casa da infância há algum tempo. O trabalho e a vida corrida me atrapalhavam um pouco. A eliminação brasileira não foi de todo ruim.

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Foto por: Reprodução // FIFA

Quando cheguei pela manhã, ela se concentrava no crochê. Dizia estar preparando uma toalha nova para um recém-nascido da família. O almoço estava no forno e iria demorar. Era uma costela típica de domingo.

Nunca entendi essa paciência dela com o crochê. É um trabalho de exaustivo, linha por linha. Um detalhe errado e tudo precisa ser desmanchado. Um novo recomeço, atenção redobrada. São toalhas, forros para poltronas, biquínis, gorros e casacos com a assinatura de quem me pôs no mundo.

Meu pai se preocupava com a costela no forno e comecei a entender o sentido do crochê quando os times entraram em campo. O nervosismo antes de pisar no gramado e ser visto por bilhões de pessoas ao redor do mundo não é para qualquer um. Tanto tempo de trabalho, treinamentos e estratégias. Tudo à beira de se desmanchar em minutos, por um e outro erro de cálculo. Só mesmo a paciência e a concentração do crochê para não pirar antes do jogo.

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Foto por: Reprodução // FIFA

Pensei na primeira final de Copa do Mundo que assisti, no distante 1998. Foi lá que os anos de espera da França terminaram no primeiro título. Ali, também, a Croácia disputou seu primeiro mundial. 20 anos depois, estava diante de uma final emblemática.

Na hora que o Mandžukić fez o gol contra, abrindo o placar da decisão aos 18 do primeiro tempo, vi minha mãe voltando atrás ao perceber a toalha meio torta. Precisaria também de persistência para reverter o gol contra naquelas linhas.

E se a Croácia derrubou tanta gente grande para chegar lá, não ia ser fácil para o time azul. O empate de Perišić, aos 28 da primeira etapa, era a prova da sua virtude. O gol de Griezmann, aos 37 minutos, saiu antes da costela ficar pronta.

Minha mãe só olhava a TV nos gritos de lances agudos, meu pai só desgrudava da tela para conferir o ponto da carne. Quando o Pogba aos 14 e Mbappé aos 19 do segundo tempo ampliaram, já havia uma montanha no prato do velho. Ele voltou à frente da TV aos 23 minutos, quando Mandžukić até se redimiu do gol contra, mas fechou a derrota croata em 4 a 2.

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Foto por: Reprodução // FIFA

Fim de jogo, França campeã. Depois de duas décadas da vitória em casa. Passando pela trágica cabeçada do Zidane em 2006, pela perda do título europeu em casa há dois anos, até chegar a mais um momento histórico.

Quando fomos para a mesa, minha mãe deixou a toalha de crochê inacabada no sofá, enquanto cada um de nós fazia seu prato – meu pai já ia para a repetição. Pensei naquele time cuja camisa parece uma toalha de mesa artesanal, com nomes de acentos nas consoantes. Um país que se fez, desfez e refez. Lembrei que, por lá, muitos tiveram almoços de domingo destruídos por guerras e extremismos.

Eles comemoraram o vice-campeonato. Para nós, um fato como esse já foi um fracasso em outros dias. E olha que, no dia a dia, somos como a Croácia: pequenos, lutadores, nos satisfazendo com cada pequena vitória cotidiana, perseguidos por gigantes tentando nos massacrar e desacreditando nossa capacidade de superação.

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Foto por: Reprodução // FIFA

O almoço poderia ter sido mais divertido, eu sei. O silêncio das mastigadas era cortado pelas notícias dos parentes distantes, a prima que engravidou, a tia cada vez mais doente. Nada de gritaria ou comemoração, como nos jogos do Brasil. Ainda assim, valorizei esse momento único. Não há certeza de que ele vai se repetir por mais quatro anos, ou quatro dias.

O jeito é esperar, trabalhar, recomeçar. Tudo do zero. Uma nova história na campanha para chegar do outro lado do mundo, no Qatar em 2022. Isso exige empenho e planejamento. Mesmo sabendo alguns rascunhos se rasgam e cedo ou tarde a vida evapora com os planos.

Afinal, a paciência é a irmã mais nova da esperança. Uma operária, sem a qual não se constroem os castelos do sucesso, que rouba para si os elogios da construção. Um mestre-de-obras de respeito, mas que não trabalha sozinho.

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Foto por: Reprodução // FIFA

Hoje pela manhã, mandei uma mensagem para minha mãe. Perguntei se ela terminou a toalha. Pedi que me fizesse uma touca de crochê. Vermelha, de preferência. Os dias andam muito frios.

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Leandro Marçal colaborou com o Portal KondZilla escrevendo sobre os jogos da Copa. Confira a série completa pelos links abaixo:
A minha primeira Copa
Ninguém disse que seria fácil
É, galera, o mundo gira
Caminho sem volta

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