Educação

A relação do funk e a academia – Parte I

23.07.2018 | Por:

Há cerca de 30 anos surgia um disco que mudou os rumos do funk nacional. Produzido pelo DJ Marlboro e lançado em 1989, este álbum já mostrava ao que veio com um título que ia direto ao ponto: “Funk Brasil“. Considerado o primeiro do gênero gravado com letras em português, o álbum “Funk Brasil” abriu as portas para uma verdadeira revolução. O que pouca gente sabe é que este disco foi marcado por uma relação entre o funk e a produção acadêmica brasileira, que possui reflexos até hoje. Para explicar melhor essa relação, o Portal KondZilla preparou um conteúdo especial. Saca só:


Foto por: Reprodução // Wikimidia

Embora esse cenário felizmente venha mudando, até pouco tempo o funk aparecia mais nas páginas policiais do que nos cadernos de cultura. Isso foi culpa, claro, do preconceito em relação a um gênero musical que vem das favelas e periferias do Brasil. Apesar disso, acadêmicos de diversas áreas se dedicaram em diferentes momentos a acompanhar e traçar a história do funk valorizando a riqueza de sua produção. Essa matéria é voltada especialmente para aqueles que desejam conhecer um pouco mais a fundo a história desse que é o maior gênero musical do Brasil contemporâneo. Mas para entendê-la, precisamos voltar um pouco no tempo.


Walter Alfaiate, Hermano Vianna e DJ Marlboro – Foto por: Reprodução // UOL

  • O Mundo Carioca – Hermano Vianna – 1987

A pedra fundamental do que veio a se tornar o funk nacional foi instalada pelo movimento Black Rio, na década de 1970. Este fenômeno, que até então não tinha “nome próprio”, foi assim batizado pela jornalista Lena Frias em uma reportagem para o Jornal do Brasil de 1976 intitulada “Black Rio – O orgulho (importado) de ser negro no Brasil”. Na matéria, a jornalista descrevia uma cena musical até então pouco conhecida pelos cadernos de cultura dos jornais da cidade. Todos os finais de semana, cerca de 1,5 milhão de jovens se dirigiam para os “bailes black” espalhados pelos subúrbios do Rio de Janeiro, com penteados e roupas que ressaltavam o orgulho de ser negro.

Embalados principalmente pela soul music, termo usado para se referir a uma variedade de subgêneros da música negra norte-americana naquele momento, estes bailes reescreveram a paisagem sonora da “terra do samba”. Mas nem tudo são flores, principalmente quando se trata de arte vinda da favela. O Black Rio sofreu uma série de ataques, acusado de ser inautêntico e uma simples imitação da cultura americana. Alguns de seus principais expoentes, como Dom Filó, chegaram até mesmo a sofrer com a repressão da ditadura. Embora o movimento Black Rio tenha inspirado uma série de artistas brasileiros a incorporar essa sonoridade em suas produções, os bailes continuaram embalados por músicas estrangeiras, principalmente norte americanas.

(James Brown era uma grande referência nos Bailes Black – suas músicas transitavam do soul ao funk e valorizavam a negritude)

Na década de 1980, a semente plantada pela cena Black Rio continuava a germinar. A sonoridade, no entanto, sofreu transformações. O soul serviu como base para diversos gêneros musicais: a disco e o funk nos anos 70, o hip-hop e a house nos anos 1980. Ainda nesta década, através do “electrofunk”, surge também um gênero conhecido como “Miami Bass” que ganhou muito espaço nos bailes cariocas, agora chamados de bailes funk. Mas nem só do miami viviam os bailes na década de 1980. Gêneros como o latin freestyle, o hip-hop e o electro também eram bastante populares. Apesar do som estrangeiro, o público e os DJs começavam a brincar com o inglês em paródias ao vivo: “You Talk Too Much”, do grupo Run-DMC, por exemplo, virava “Vou tacar tomate” na boca do povo.

Mesmo consolidados como a principal opção de lazer da juventude suburbana e favelada, especialmente sua parcela negra, os bailes funk continuavam a receber o silêncio da mídia carioca – assim como havia ocorrido no passado.

Este movimento de tamanha proporção e ainda pouco conhecido pela imprensa chamou a atenção de Hermano Vianna, que trabalhava como jornalista naquele período e já tinha representado um importante papel na projeção de outra cena musical brasileira. Foi ele quem apresentou, no início da década de 1980, o rock de Brasília para o público do eixo Rio-São Paulo.

O sucesso de grupos como Legião Urbana, Capital Inicial e Plebe Rude se deve, em grande medida, ao seu olhar atento para o rico cenário da música brasileira. No auge do bailes na década de 80, Hermano fazia seu mestrado em antropologia pelo Museu Nacional, no Rio de Janeiro, sob a orientação de Gilberto Velho. Instigado por aquele cenário, ele resolveu transformar os bailes funk no tema de sua dissertação. Vale aqui uma breve explicação: De forma resumida, podemos descrever a antropologia como a área do conhecimento que estuda a vida do ser humano em sociedade. Gilberto Velho é a maior referência brasileira na área de antropologia urbana, ou seja, o estudo do ser humano nas cidades (ele faleceu em 2012, mas até hoje seus trabalhos são uma grande referência para diversos cientistas sociais).

Ao longo de sua pesquisa, Hermano Vianna conheceu um jovem DJ que lhe apresentou o mundo funk. Fernando Luís Mattos da Matta, conhecido como DJ Marlboro, ainda estava começando a carreira e ganhando espaço nos bailes, especialmente pela região de Niterói. Se hoje em dia todo músico sabe o quanto é difícil conseguir alguns equipamentos, no Brasil da década de 1980 era ainda mais complicado. Em grande medida, o funk se manteve esse tempo todo apenas com músicas estrangeiras porque uma bateria eletrônica, principal equipamento para produção musical dos ritmos mais ouvidos nos bailes cariocas, não era algo que se via por aí nas periferias da época.

Acontece que ao fim de sua pesquisa, Hermano presenteou Marlboro com uma dessas baterias eletrônicas que era de seu irmão Herbert Vianna (ele mesmo, vocalista do Paralamas do Sucesso). Quando soube o que seu aluno havia feito, Gilberto Velho comentou ironicamente: “é como dar um rifle para um chefe indígena”. Em entrevista para o Portal KondZilla, Marlboro contou: “quando ele me deu essa bateria acendeu uma luzinha: ‘caraca, eu posso ter artistas do funk! Vou pegar essa bateria aqui e começar a produzir’”. E foi isso que ele fez, lançando em 1989 o primeiro volume do Funk Brasil. A partir daí o que se viu foi uma verdadeira febre. Diversos DJs e equipes de som passaram a lançar seus próprios discos com funks em português, transformando pra sempre a sonoridade da música brasileira.

Se não fosse pelo presente do pesquisador Hermano Vianna ao DJ Marlboro, quando será que sairia o primeiro álbum do movimento funk?

Dennis Novaes é bacharel em Ciências Sociais com habilitação em Antropologia pela Universidade de Brasília, mestre em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ, doutorando também pela UFRJ e também autor da dissertação “Funk Proibidão: música e poder nas favelas cariocas”. Em parceria com o Portal KondZilla, Dennis produziu dois textos sobre a relação do funk e a academia, sendo que o próximo conteúdo sai nesta terça-feira, 24 de julho. Fique ligado!

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