O funk se despede do MC G3

22.08.2018 | Por: Kondzilla Portal

A convite do Portal KondZilla, o pesquisador Carlos Palombini escreveu uma carta de despedida para o MC G3.

O MC G3, da Cidade Alta, na Zona Norte do Rio de Janeiro, foi morto aos 36 anos de idade em sua residência na Vila São Luís, em Duque de Caxias, Baixada Fluminense, na madrugada de quarta-feira, dia 15 de agosto de 2018. A notícia, dada no início da noite com calculado suspense por um programa de sensacionalismo criminal, provocou uma onda de manifestações entre DJs, MCs, empresários e fãs. Entre eles: Cidinho, Mascote, Sabrina, Deise Loira, Gil do Andaraí, Orelha, Tikão, Alexandre Fabuloso, Juninho da 10, Copinho, Rodson, Katia, Bobô, Kauan e muitos outros – aqueles que o inspiraram ou a quem ele inspirou, aqueles com quem dividiu os palcos e os bailes, seus fãs – manifestaram nas redes gratidão, amizade, tristeza e revolta.

G3, “O Terrível” (mais tarde, “O General”), nasceu em 3 de agosto de 1982 na favela de Vigário Geral, começou a cantar e compor aos 8 anos de idade. Depois de adotar o nome MC PC, ele assumiu a identidade pela qual se tornou conhecido, uma homenagem ao grupo de rock cristão “Oficina G3”. O então MC G3 despontou no início do século XXI como um dos grandes nomes da segunda leva do funk de relato carioca (muitas vezes confundido com proibido ou consciente), na esteira dos trabalhos de Cidinho e Doca, Willian e Duda, Galo, Mascote, Sapão, Catra, Marquinho Pá-Pum e Chá do Borel. Na Cidade de Deus, o funk se reinventava a partir do tamborzão e conhecia sua segunda onda de popularidade na mídia: o consciente cedia lugar à putaria e ao proibidão enquanto os CDs substituíam as fitas cassete, antes de serem trocados pelo YouTube, que eventualmente traria ao subgênero proibido uma audiência na casa da dezena de milhões.

Com o inconfundível “A” rasgado, que ele incorporou gradualmente, G3 deu voz aos clássicos “Tu vai tomar de G3” e “Quem nasceu, nasceu”, lançados em CD nas primeiras séries de coletâneas, entre 2001 e 2003, e as paródias como aquela em que Caetano Veloso, Alcione, Zeca Pagodinho, Leonardo, Vavá, Martinho da Vila e o padre Marcelo Rossi cantam seu apreço pela droga. Em 2005, aos 23 anos, ele lançou seu álbum solo e foi revelado para um público que não frequentava o circuito dos bailes ao executar, a cappella, “Quem nasceu, nasceu” na abertura do documentário de Denise Garcia, “Sou feia mas tô na moda”. No filme, ele contou fazer então cerca de nove shows por semana e receber uma média de 400 reais por apresentação no Rio e de 2 mil a 2.500 em outros estados. E acrescentou: “É do tráfico quem quer, se envolve no tráfico quem quer; canta quem quer, mostra a cultura quem quer.” Quando Denise montava o filme, ele a procurou e, com lágrimas nos olhos, pediu-lhe que retirasse os proibidões da película. Em 26 de maio do ano seguinte, seu nome estaria na capa do jornal Meia Hora, ao lado de Colibri, Sabrina, Frank, Duda, Catra, Menor do Chapa, Menor da Provi, Doca, Cidinho, Tan, Cula, Sapão e Mascote, com a chamada “Reis do funk na mira da polícia”.

Aparte as dificuldades inerentes a uma carreira musical, G3 conviveu com rumores sobre sua sexualidade desde muito cedo em sua trajetória artística. É difícil imaginar em que medida o boato prejudicou seu trabalho, mas ele sofria com isso. O artista foi obrigado a confrontar-se com o segredo público no palco na Roda de Funk em junho de 2016, quando o MC Max, da Vila Cruzeiro, o atacou com rimas pesadamente homofóbicas. O balanço instável entre ficção e realidade, do qual o funk deriva tanto de sua potência, foi quebrado. G3 interrompeu o duelo e protestou: “Tu não tá rachando a minha cara, tu tá rachando a cara do funkão”. E saiu de cena: “Eu sou o G3, nada vai mudar na minha vida”.

O “homem com coração de menino” viveu o duplo prazer de escapar à mira da polícia e da boataria enquanto se notabilizava no mais masculino dos campos musicais. Na crise do pós-UPP, quando outros artistas passaram a experimentar hibridações com o consciente, o pop e o rap, G3 chamou para si a companhia de Gil do Andaraí, outro dos grandes de sua geração, e ambos gravaram um consciente tão realista quanto profético: A lei da favela, lançado em 23 de abril de 2018, em produção musical do DJ Flavinho Behringer.

Em 31 de julho de 2018, três dias antes de seu trigésimo sexto aniversário, G3 enviou ao grupo de WhatsApp Dinossauros do Funk uma mensagem de voz em tom pausado: “O mal do ser humano é que ele dá valor às pessoas só depois que elas morrem. O importante é dar valor enquanto está vivo, porque só se vive uma vez. Depois que vai embora não adianta falar que tem saudade; depois que vai embora não adianta falar que gostava; depois que vai embora não adianta falar que era maneiro. Então, mano, dá valor enquanto está vivo, que, depois que morre, só vai restar a lembrança. E essa lembrança é uma coisa que machuca, igual à saudade.”

Na sexta-feira, 17 de agosto, caía uma chuva fina no Cemitério do Irajá quando os MCs Willian e Duda, Mascote, Gil do Andaraí, Smith, Tikão, Katia, Alexandre, Bobô e Mulato se preparavam para sepultar G3. E era a época de ouro do proibidão – uma parte de si mesmos – que eles enterravam com o amigo. No domingo, 19 de agosto, após uma apresentação na festa de vinte e cinco anos da torcida Raça Fla de Brasília, Cidinho, que G3 tanto admirava, sintetizou a reação do mundo funk numa metáfora: “Esse chapéu que eu ganhei, eu pedi esse chapéu, porque esse chapéu tem dono. Só que o dono não está mais vivo de corpo, de matéria. O espírito dele e a voz dele já estão eternizados—do G3. Nem eu nunca vou botar na cabeça esse chapéu: se eu botar esse chapéu um dia, podem reparar que vou estar de olhos azuis.”

Paulo César da Silva deixa uma filha de 11 anos. MC G3 (1982–2018)

Relembre a trajetória musical por essa playlist.

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Palombini é Professor de musicologia da UFMG, professor permanente do programa de pós-graduação em música da UNIRIO, bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq e Ph.D. em Música pela Universidade de Durham, Reino Unido.

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